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Livro  - Book

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Criança X & Outros Contos, histórias contadas para a autora Thais Riotto, sopradas por encantados, sobre lendas & contos do além...

Criança X 

(Um dos contos do Livro)

São fragmentos de mim que me cortam ao meio, que arrancam lagrimas de um passado, presente e de uma época distante redesenhada na alma através de séculos.

 

Histórias contadas nas tatuagens da alma, que trilham o destino por caminhos já andado.

 

São fragmentos de nós nas relvas verdes dos campos, sopradas ao vento, no tempo do destino, poeira do tempo, girando até pousarem no reencontro da vida.

 

Mais um tempo recomeça, mais uma estrada ao vento que me conduz, é onde os sonhos moram, é lá que eles se tornaram realidade...

 

(Foto Internet)

 

Eu não gosto de abraços, a última lembrança que tenho de um, é uma memória embaçada e sem rosto de alguém que me abraçou e depois me largou na fonte de pedra perto de uma arquitetura antiga. Escolheram meu destino e nunca mais me procuraram.

 

Não lembro ao certo a minha reação quando me deixaram, nem mesmo minha idade. Lembro apenas que era pequena. Alguém apareceu na porta um tempo depois, tempo esse que pareceu uma eternidade. Levaram me para dentro, tudo parecia um misto de sombras e sons assustadores. Fui jogada num quarto, erámos vários, meninos e meninas de todas as idades.

 

Alguns quartos tinham adultos, estavam ali, enfrentando a vida que escolheram para eles. Destinados a uma nova casa que não escolheram, mas que foi só o que restou.

 

Da janela eu via a lua, livre no céu, olhava o campo, parecia serena, despreocupada. Eu queria ir embora, todos queriam. Mas não podíamos, não tínhamos mais casa, não tínhamos para onde ir, não tínhamos para onde fugir. Diziam-nos que erámos doentes, que estávamos ali para sermos curados, mas não era verdade ou se era, a cura nunca chegava.

 

Então estou aqui no quarto, em uma cama de ferro, com um colchão com cobertas e lençóis, e várias camas iguais as minhas.

 

- Qual é seu nome?

 

- Eu não sei.

 

- Criança X.

 

Foi assim que fui catalogada, como criança X. Fui percebendo que tudo ali era dessa forma, tudo e todos eram nomeados assim. Passei a conviver com “crianças letras”, muitas não sabiam seus nomes e as poucas que sabiam, mal pronunciavam um som perceptível.

 

Com o tempo passei a conhecer outras crianças e outras pessoas que caminhavam pelos corredores, eu as chamava de encantados, não sentiam dor, não sentiam o vento, e poucos de nós conseguiam vê-los.

 

Era difícil saber dias, duvido até que esses tais dias da semana existiam. Quanto as horas, eu via os ponteiros girar nos relógios dos corredores de algumas salas. Mesmo com a chegada da noite e do dia na sequência, eu não sabia quantas vezes os relógio havia girado, para saber quantos dias haviam passado.

 

Tinha dias que eu chorava sem parar e outros que eu gritava na escuridão da noite, e por isso era trancada em um quarto vazio, apenas com um colchão no chão e sem nada para comer, como castigo. E outras vezes eu apenas vagava em silêncio pelos corredores, após as seções de cura, era assim que eles chamavam, intermináveis, eram feitos em todos que morávamos ali, levados pelas famílias e abandonados à própria sorte.

 

Para mim eram monstros de ferro, as vezes éramos algemados, amarrados, havia fios, choque, água, remédios com gosto amargo, balas que tomavam forçados várias horas dos dias.

 

Uma hora qualquer do dia parei de chorar, parei de lutar, apenas caminhava em silêncio pelos corredores. Um dia sai, sentei-me na grama e fiquei a olhar a lua no céu, só olhar. E passei a fazer isso todas as noites, mesmo nas mais frias. Meu pensamento ia para algum lugar, eu chorava para ir embora, para qualquer lugar, longe dali.

 

Do outro lado do prédio, havia um cemitério, as lapides eram pedras. Fui entendendo que aquelas que não aguentavam os métodos que eles chamavam de cura, eram enterrados ali, corpos anônimos, que ninguém nunca aparecia para visitar. Às vezes, alguém que trabalhava no local colocava flores nos túmulos, outras vezes a natureza parecia sentir dó e fazia chover pétalas sobre o campo.

 

Os encantados caminham por ali, alguns contam suas histórias ou as memorias que lembram. Dizem ter sido enterrados e esperavam que ao menos depois de mortos, alguém voltaria para ter notícias, nunca ninguém voltou.

 

E quando o lugar estava cheio, tudo era queimado, cinzas negras cobriam a grama, as árvores e subiam para o céu. E o ciclo de chegadas de pessoas, de enterros, era contínua, afinal era um sanatório, sem cura para doenças ou loucuras.

 

As moças que cuidavam de nós, costumavam nós chamar de pestes cinzentas, achávamos que era porque tínhamos todos as mesmas roupas, na verdade, era o nome de nossa doença, assim me contou uma vez um dos encantados, que disse ter morrido disso, seja lá o que isso fosse.

 

Passei a visitar todos os dias o cemitério quando saia a noite para ver a lua, fugia por um túnel subterrâneo da cozinha e corria para os campos do cemitério, e pedia para morrer.

 

Voltava para dentro, quando o dia começava amanhecer para não ser apanhada, e ter que ficar dias sem comer. A comida não era grande coisa, uma pasta estranha sem sabor, sem sal, sem gosto. Parecia um monte de nada, mas era o que tinha, era melhor o monte de nada, do que o nada literalmente.

 

Com o tempo, deixei de viver e então adormeci no quarto escuro entre as folhas de um diário e os sonhos de criança sem esperança. Hoje sou um dos encantados esperando por algo, por alguém que nunca vai chegar.

 

Em meu tumulo, na lapide de pedra, foi escrito: Criança X. Alguém colocou flores e organizou minhas palavras que rabiscava em folhas junto ao meu corpo antes de enterrar. Na prece que alguém rezou, um pedido: Que quando ela renascer em algum lugar, escreva sobre nós.

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